sexta-feira, 7 de abril de 2017

Ícaro (sonhar é para os pássaros)

Este poema consta de meu mais recente livro, AmarTeAtéAmorTe (Porto Alegre: Gente de Palavra, 2016)

Paisagem com queda de Ícaro Peter Brueghel - O Velho - 1565

Ícaro (sonhar é para os pássaros)


construção

longo tempo de preparo
recolhendo material
penas (que pássaros não faltam)
cera varas fibras e resinas

o pai cria
constrói
ensina a construir
com paz e ciência
liberdade
fim da tortuosa prisão

Dédalo
o pluriengenhoso artesão
Dédalo
dos dedos hábeis
Dédalo
inventor de espantos


voo

voam duas aves nunca vistas
estranhas
só as asas emplumadas
são aves porque voam
e ave é o que com ave se parece
maiores que qualquer que se conhece
são aves porque só as aves voam

as asas não pertencem a seus corpos
sobre os corpos só há pele e poucos pelos
as penas sobre as asas são de ave
o esqueleto que as conforma é vegetal
o que se vê voar não são aves de fato
mas homens com algum tipo de artefato

são mãos que construíram
são braços que que impulsionam
um já é velho e outo bem jovem
são homens mas estão livres do chão

o velho voa pouco
voa baixo
mais plana do que agita suas asas
sobrevoa o mar direto à praia
onde pousa (quase cai) em segurança

o garoto é alegria e liberdade
desliza entre ventos
parceiro de pássaros
canta puro encanto
um canto de emoção
canto daquele que voando
se libertou da prisão

se eleva a uma altura imponderável
o que busca tão alto aquele jovem?
tocar as nuvens?
beijar o sol?
só sabe-se que sobe
sobe sempre sobe até
que as asas se desfazem
então cai


visão

o pastor apascenta suas ovelhas
cuida que não saiam da sua vista
que não haja predador ou peçonhento
que ameace o seu ganho com o rebanho

o pescador cuida de pegar peixes
em silêncio confere suas esperas
paciência e atenção na ação precisa
de puxar quando belisca
firme e calmo

o lavrador empurra seu arado
pelo terreno que será semeado
em sulcos se abre a terra umedecida
receptiva e fértil para a vida

verificando o velame
e a viração dos ventos
o marinheiro assegura
sua vida e seu sustento

tocando o dia a dia a cada dia
enredando a rotina quotidiana
revivem outra vez sempre de novo
a vida que viveram seus avós

é com espanto que então
ouvem a voz que entoa
uma canção conhecida
que parte do impossível

quem quer que cante este canto
canta lá muito do alto
do céu acima do mar
de onde se vê uma ave
que é um menino a voar

mas as asas se desplumam
viram só galhos e penas
e o jovem se precipita
para o fundo em alto mar

olhares que eram para o espanto
agora olham de lado
atentos aos cuidados quotidianos
o oceano afogou todo o delírio
provou-se que o sonhar não é pros homens

o pastor já volta ao pastoreio
também o lavrador só vê a terra
das velas se o cupa o marinheiro
de escamas anzóis e linhas o pescador

sonhar é perigoso para os homens
afaste-se do sonho a juventude
de sonhos não se ocupem os mortais
sonhar é pra quem dorme
ou para os mortos


epístola psicografada

não chora pai porque caí
a queda foi o preço
do presente
maior que a vida
asas
presente que é pura liberdade
além dos muros
além do mar
além do chão
se meu voo
foi além do limite dessas asas
é que o sonho superou a realidade
e hoje sou sem corpo
sou só sonho
e voo libertado da matéria
num corpo que é sem peso
que é só brisa
não chora pai porque caí
se o teu legado é o sonho de voar
não seja o meu o medo de sonhar

Renato de Mattos Motta
20/02/2016

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