terça-feira, 27 de maio de 2008

DO AMOR



Do amor há muitas lógicas possíveis
da estética à filosófica,
da mercadológica
(que dizem ser a mais antiga)
à química das farmacológicas pílulas celestes.

Tantas visões!
Quanta expectativa!
Inumeráveis fantasias!

Quanto a mim,
do amor nada observo
a não ser - diretamente - o objeto.

Nada espero, a não ser,
talvez,
a suprema graça de ser correspondido
Renato de Mattos Motta
Porto Alegre, fevereiro de 2008

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Um convidado Ilustre: João Cabral de Melo Neto

O ovo de galinha

João Cabral de Melo Neto






I


Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.


Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.


No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:


que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.


II


O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.


E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas


cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.


No entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.


III


A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.


O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.


A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.


É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.


IV


Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.


Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.


O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:


procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

poema frio


Inverno
inaugurou hoje
não no calendário,
que lá inda é outono,
mas no ano
no dia
na pele.

Inverno
invadiu o ar
que chora
uma chuva
molhada
chuva de inverno
molha até os papéis
(os que estão
nas gavetas)

Inverno
chove triste
molha a roupa
molha o corpo
molha os ossos
chora o dia
até virar noite

Inverno
encharca
as calçadas,
emboscado
embaixo das lajes,
alagando frieiras,
penetrando por
insuspeitos
buracos no sapato.

Inverno
triste e cinzento
como o dia
como a cidade
como o mofo
das paredes
e da alma
das pessoas

Se o inferno
fosse frio,

seria inverno