quarta-feira, 21 de maio de 2008

Um convidado Ilustre: João Cabral de Melo Neto

O ovo de galinha

João Cabral de Melo Neto






I


Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.


Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.


No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:


que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.


II


O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.


E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas


cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.


No entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.


III


A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.


O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.


A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.


É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.


IV


Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.


Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.


O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:


procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

4 comentários:

Cecília Borges disse...

muito bom!

Renato de Mattos Motta disse...

É, Cecília. Cabral é mestre! Mestres são eternos e perfeitos.

FlaM disse...

Maravilhoso. Conheci no museu da lingua portuguesa e lá eles apresentam um fragmento dele mesclado a um outro textinho da Clarice lispector sobre o ovo tb (daqueel livro infantil dela sobre galinha).
maravilhosos! cruzadinha perfeita!
bj, f

Renato de Mattos Motta disse...

Nossa!
Achei que já conhecias há muito tempo!
Eu conheci este poema lá pelos meados da década de 70 nas aulas do Flávio Oliveira no ginásio...
(eu devia fazer um post só sobre as aulas dele!)
Obrigado pelo comentário, mana querida!
Bjk!